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Ativista transmite ao vivo a sua própria detenção – o que o vídeo nos ensina

Caso no Brasil é mais um exemplo de como o direito de filmar está sendo atacado por policiais violentas em todo o mundo

Por Priscila Néri

| Leia a cobertura do caso em Inglês aqui |

Na noite de 19 de fevereiro, um aliado de longa data da WITNESS, Raull Santiago, foi detido junto com dois amigos enquanto transmitia ao vivo uma abordagem truculenta de policiais do batalhão de choque num viaduto escuro no Rio. Os policiais fizeram jus à sua  reputação e se comportaram exatamente como se esperaria de uma das forças policiais mais violentas e letais do mundo: ameaçaram, empurraram, vasculharam telefones celulares (ilegalmente), e, sem qualquer explicação, arbitrariamente detiveram  Raull por “desacato”.

Ao ser  liberado algumas horas depois, Raull perguntou aos repórteres que cobriam o caso: “isso teria acontecido com três jovens de motocicleta em Ipanema, Copacabana ou Leblon?”.

Os próprios repórteres estariam cobrindo o caso se Raull não fosse um ativista tão conhecido?  Você estaria lendo isso agora?

Para os moradores das  favelas do Rio e de comunidades historicamente criminalizadas, o que aconteceu foi só  mais uma quinta-feira qualquer … ou segunda-feira … ou terça-feira …. Essas comunidades há muito denunciam os impactos brutais das operações policiais e a “guerra às drogas” em suas vidas diárias: escolas fechadas, buscas abusivas, ameaças verbais, agressões físicas, ordens arbitrárias, invasões de casas sem mandado, destruição de propriedade, tortura, desaparecimentos e mortes. E se isso tudo já era ruim durante os chamados governos “de esquerda”, que enviaram tanques militares para as favelas durante as Olimpíadas para os turistas se sentirem seguros, imagine com o governo Witzel, que declarou quando se elegou que instruiria  os oficiais a “mirar na cabecinha” e “atirar para matar”.  Aquele mesmo Witzel que autorizou helicópteros a atirar nas favelas do céu, levando o terror habitual das operações policiais a um nível ainda mais surreal e aterrorizante.

A polícia está cada vez mais à vontade diante dessa política agora oficial— de impunidade quase que garantida. Em 2019, a polícia do Rio matou mais do que nunca antes – uma média de 5 por dia apenas no estado do Rio. Estima-se que 75% dos assassinados no Brasil sejam jovens negros – um a cada 23 minutos.

Portanto, não é surpresa que a Polícia fique nervosa quando vê alguém filmando. Eles entendem o poder dessas imagens e não querem que você, nem ninguém, as veja.

Raull entende o poder dessas imagens profundamente. O coletivo que ele co-fundou com amigos em 2013, o Coletivo Papo Reto, usa vídeo e tecnologia para proteger os direitos de suas comunidades, disputar narrativas e mobilizar apoio aos moradores do Complexo do Alemão. O trabalho desse coletivo tem sido essencial em muitas frentes, sendo cada vez mais  reconhecido internacionalmente ao longo dos anos. Na WITNESS, temos  a sorte de colaborar com eles desde 2014.

Por isso,  acho que podemos imaginar que os policiais que pararam Raull e seus amigos no dia 19 de fevereiro não estivessem esperando tanto barulho.

O vídeo

Vamos destrinchar o  vídeo do Raull para entender o que ele nos ensina sobre o uso do celular para a garantia de direitos.

Raull começa transmitir ao vivo pouco antes das 20h com o tuite: SOS – ABORDAGEM EXTREMAMENTE VIOLENTA DA POLÍCIA DO BATALHÃO DE CHOQUE (…) Ele narra a cena por cerca de 5 minutos antes do vídeo terminar repentinamente quando ele é detido. Alguns pontos que valem ser destacados sobre esse registro:

  • Segurança: o direito de filmar é protegido pelas leis brasileiras, mas Raull sabia que estava numa situação muito delicada de segurança e que as coisas poderiam piorar rapidamente. Depois de avaliar suas opções, ele decide seguir o caminho da “maior visibilidade para maior proteção”, transmitindo ao vivo e convidando quem o acompanhava nas redes a  a “ficar com ele” e alertando o policial que “400 pessoas estavam assistindo junto com ele”. No fim das contas, isso foi uma boa jogada, à medida que a ampla rede de Raull rapidamente se mobilizava para apoiá-lo advogados foram à delegacia para ajudar e outros  aliados ajudaram a espalhar a notícia em tempo real. 

Ponto-chave: nunca é suficiente ter o direito de filmar garantido na lei, sempre avalie a segurança antes de decidir se filmar naquele momento pode  ajudar – ou atrapalhar.

  • Narração: Primeiro, Raull permaneceu calmo durante todo o encontro, abordando o policial respeitosamente, apesar das circunstâncias tensas. Ele diz durante as filmagens: “Estou abrindo minha mochila para procurar a identificação que você solicitou”, dificultando que, depois,  o policial pudesse fazer qualquer alegação falsa, como afirmar que ele achava que Raull estava pegando uma arma, por exemplo. Isso é super importante! Se você perder a calma, é mais provável que seu vídeo possa ser usado contra você, portanto, não dê a eles essa oportunidade. Segundo, a narração adicionou um contexto importante para o espectador, pois Raull explicava sua localização e descrevia o que estava acontecendo em detalhe para quem o acompanhava.

Ponto-chave: mantenha a calma, afirme apenas os fatos e evite dar opiniões durante a filmagem que possam ser usadas contra você depois; não se esqueça de informar a data, o local e a hora durante a filmagem.

  • O que o vídeo viu: Raull filmou detalhes visuais importantes durante o encontro. Ao acompanhar a transmissão, era possível entender claramente  a posição dos policiais em relação a ele e seus amigos, o rosto do policial (apesar de não vermos uma identidade clara na farda), as armas que os policiais estavam carregando e como as manuseavam (dedo no gatilho, por exemplo). No fundo, os policiais  vasculhavam o celular do amigo do Raull ilegamente ; Raull também alterna entre a câmera da frente para a traseira, deixando que acompanhássemos ele em relação ao que acontecia. 

Ponto-chave: é  difícil manter a mão estável  para filmar num momento como esse, mas a experiência de Raull permitiu que ele capturasse as informações visuais mais essenciais que poderiam protegê-lo (e proteger a verdade) depois  do incidente. A melhor maneira de se preparar é … bem … se preparar! Aprenda sobre o direito de filmar em seu país, pense sobre o que –e por que– você está filmando, e também o que você espera que seu vídeo resulte depois (responsabilização dos policiais, prova contra acusações falsas, etc).

  • O que o vídeo não viu: Como ativista conhecido e amplamente respeitado, Raull tem um número significativo de seguidores nas redes  sociais e isso o ajudou a garantir os diferentes tipos de apoio necessários num momento como esse, ativando advogados e jornalistas com rapidez. Ele também teve Lana, co-fundadora do  Coletivo Papo Reto, ao seu lado do começo ao fim. Lana trabalhava nos bastidores ativando aliados, mantendo as pessoas informadas sobre o que estava acontecendo na delegacia, documentando tudo cuidadosamente. 

Ponto-chave: sempre tenha uma Lana! ou alguém em quem você confie profundamente; se você estiver filmando em áreas de alto risco, converse com seus amigos  sobre os possíveis cenários de emergência antes de saírem, façam uma lista de quem você poderiam contatar para ajudar se necessário, avaliem juntos a visibilidade pode ser uma estratégia melhor do que baixar perfil, por exemplo. Isso é importantíssimo.

Felizmente, a noite de 19 de fevereiro  terminou bem, com todos em segurança e em tempo de cantar Parabéns pra Raull…sim, era o aniversário dele).

Mas sabemos que essa não será a última vez que um policial violento vai tentar impedir alguém de filmar – no Brasil ou em outro lugar. Como Raull, ativistas de outros países também se levantaram para defender seu direito de filmar  em momentos críticos – manifestantes indígenas no Equador, por exemplo, ou pessoas como Mildred Owisa no Quênia, Kianga Mwamba nos Estados Unidos, os jornalistas Kofi Bartels e Mary Ekere na Nigéria e tantos outros. A WITNESS celebra essa coragem e  seguimos comprometidos em colaborar com parceiros de todo o mundo para afirmar, defender e promover o Direito de Filmar. Porque sabemos que as câmeras acopladas às fardas da Polícia não resolverão esses problemas e porque nós, o povo, temos mais câmeras do que elas.