Audiovisual como ferramenta de luta e memória no Quilombo do Bracuí
Oficina promovida pela Witness fortalece o uso do vídeo como instrumento de resistência e preservação cultural de jovens quilombolas e indígenas
No último mês de maio, a Witness esteve no Quilombo Santa Rita do Bracuí, em Angra dos Reis (RJ), para realizar uma oficina de audiovisual voltada a crianças e jovens da comunidade. A atividade contou também com a participação de jovens indígenas Guarani Mbya, moradores da região, reforçando a importância das alianças entre povos tradicionais na defesa de seus direitos e territórios.
Durante dois dias intensos de trocas e aprendizados, os participantes se aprofundaram no universo da linguagem audiovisual com foco especial na prática de edição. A oficina deu continuidade a uma formação anterior da Witness, voltada à experimentação com câmera, captação de som e registros orais. Nessa segunda etapa, os participantes construíram coletivamente um roteiro e vivenciaram a experiência de montagem de um material audiovisual, a partir de imagens gravadas anteriormente e de arquivos enviados pela própria comunidade.
Antes da oficina, foi realizada uma coleta de registros feitos por moradores com o objetivo de trabalhar essas imagens, construir narrativas coletivas e reforçar a importância de preservar esses materiais como memória viva. No futuro, esse acervo poderá não apenas guardar as expressões culturais da comunidade, como também servir para denunciar violações e ameaças ao território.
Durante a atividade, ainda foi possível colocar a mão na massa para registrar uma celebração tradicional que acontecia na comunidade e complementar com mais imagens o vídeo que estava sendo montado. A proposta da formação foi oferecer recursos técnicos e criativos para que os próprios moradores possam documentar, narrar e fortalecer suas lutas por meio das imagens.
Para Amanda de Souza, educadora, jongueira e moradora do Bracuí, o audiovisual pode ampliar a capacidade da comunidade de contar sua própria história com autonomia. Mesmo sem familiaridade prévia com vídeos ou fotografias, ela se encantou com o processo de edição e passou a perceber o audiovisual como uma forma de organizar e narrar as histórias do seu povo.
“A nossa história precisa ser contada pela gente, a gente ser o sujeito da nossa história. E além de ser a pessoa que conta, a gente vai contar conforme realmente a história é dita pelos nossos mais velhos. O que a gente escuta na oralidade, o que a gente vai percebendo. Então, a importância de contarmos a nossa história é algo de resistência pelo território”, destaca.
Natalie Hornos, gerente de programas da Witness Brasil, reforça a importância do domínio da linguagem audiovisual como ferramenta de soberania e educação crítica para que as pessoas tenham a possibilidade de contar suas histórias e versões a partir do próprio ponto de vista.
“E, em um contexto marcado pela desinformação e pela produção constante de fake news, compreender o processo de edição também é uma forma de entender como é fácil manipular vídeos, manipular suas mensagens e criar um sentido diferente para elas. A edição se torna uma ferramenta para refletir sobre a criação de discursos, e isso gera uma possibilidade de ter um olhar crítico ao assistirmos televisão, vídeos, filmes ou qualquer conteúdo audiovisual nas redes sociais”, afirma.
O Quilombo do Bracuí, assim como muitas outras comunidades quilombolas e indígenas no Brasil, enfrenta ameaças constantes ao seu território. A degradação ambiental é uma realidade urgente: um dos rios que atravessa a região, essencial para a vida local, tem sido gravemente impactado por intervenções e negligência, afetando diretamente a biodiversidade e os modos de vida tradicionais.
Nesse cenário, o audiovisual surge como uma estratégia poderosa para registrar violações, preservar memórias e dar visibilidade às histórias contadas pelas próprias comunidades. A câmera torna-se uma aliada na proteção do território, na denúncia de injustiças e no fortalecimento e preservação das tradições e da cultura.
O uso da imagem para recontar o passado
O uso do audiovisual no Quilombo Santa Rita do Bracuí também faz parte de um processo mais amplo conduzido pelo projeto AfrOrigens, que tem desenvolvido um trabalho pioneiro na identificação de um navio naufragado próximo à comunidade, o Brigue Camargo.
A embarcação foi um navio que naufragou em 1852 na Baía da Ilha Grande, após desembarcar, de forma clandestina, centenas de pessoas escravizadas trazidas de Moçambique, mesmo após o tráfico ser oficialmente proibido no Brasil. Para ocultar o crime, o navio foi incendiado e afundado. No entanto, sua história permaneceu viva na memória oral da comunidade do Bracuí.
Em 2023, pesquisadores do projeto AfrOrigens localizaram vestígios da embarcação. A descoberta só foi possível graças à parceria com os moradores do quilombo. Hoje, integrantes da comunidade estão sendo formados em mergulho e audiovisual para atuar diretamente nas expedições de pesquisa. O objetivo é transformar o sítio arqueológico em um espaço de memória, formação e turismo de base comunitária, uma iniciativa que representa um marco na valorização do território e na reparação histórica.
A professora e pesquisadora Martha Abreu destaca que a comunidade quilombola do Bracuí conhece a história do navio Brigue Camargo há mais de 170 anos. Dessa forma, o processo de localização e investigação do naufrágio representa não apenas uma conquista histórica, mas também uma forma de reparação às violências do passado.
Abreu enfatiza que essa reparação deve ir além da memória e da história, envolvendo também a restituição de dignidade e direitos às populações afetadas. “De reparação no sentido de a gente contar essa história e uma reparação também que indenize ou que retribua a essas pessoas a dignidade e a possibilidade de viver em suas terras”, completa.
Para ela, as imagens têm um papel decisivo na reparação histórica do Quilombo do Bracuí. Ao lado da história oral, elas ajudam a reconstruir narrativas apagadas e tornam visível a violência do passado. O audiovisual, segundo ela, alcança onde a escrita não chega, ampliando a compreensão e tocando públicos mais amplos.
A partir dessa descoberta, moradores do quilombo estão sendo capacitados para realizar mergulhos e participar diretamente das pesquisas subaquáticas. Nesse processo, o uso do audiovisual é novamente central: registrar o que é encontrado no fundo do mar, produzir materiais sobre a investigação, e, sobretudo, garantir que a memória do território seja preservada e narrada por aqueles que o habitam. A capacitação técnica em audiovisual se conecta, assim, com a valorização dos saberes ancestrais e a resistência quilombola.
Francielle da Silva, moradora do Quilombo do Bracuí, jongueira e uma das comunicadoras do projeto AfrOrigens, destaca a relevância de produzir registros audiovisuais como estratégia para atrair a atenção da mídia e fomentar o turismo de base comunitária. Ela já concluiu o curso de mergulho e, agora, está se capacitando em técnicas de filmagem para, futuramente, registrar as descobertas subaquáticas.
“Registrar é fundamental para trazer visibilidade. E esses registros ajudam a ampliar o conhecimento sobre a nossa história e a nossa cultura”, afirma.
O professor e arqueólogo Luis Felipe Santos, presidente do AfrOrigens, reforça a importância da apropriação da linguagem e da imagem como parte do processo de emancipação das populações negras.
“Tanto os discursos sobre nós como as nossas imagens sempre foram produzidos pelos outros. A gente poder retomar esse controle sobre como construir as nossas imagens, as nossas linguagens, é algo fundamental dentro desse contexto, onde a gente busca uma mudança de mentalidade dentro da sociedade brasileira.”
Projeto AfrOrigens
A oficina audiovisual realizada pela Witness foi feita a convite do projeto AfrOrigens, que tem como propósito ampliar o debate sobre arqueologia aquática da diáspora africana e fortalecer, em nível nacional e internacional, a produção de conhecimento sobre esse tipo de patrimônio histórico. A comunicação, nesse processo, deixa de ser apenas ferramenta: torna-se ponte entre gerações, territórios e direitos.