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‘Como um calo ou uma bomba-relógio?’ Reflexões sobre trauma, resistência e o trabalho com direitos humanos durante a pandemia

Por Maria Isabel Di Franco Quinonez, Eliza Hollingsworth, Lily Lucero, Sofia Jordan & Lili Spira  [Traduzido ao português pela Josefina Caro. Publicado originalmente aqui. Versão em espanhol aqui.]

No auge da Primavera Chilena, a jornada de protestos que começou no Chile no fim de 2019, o advogado de direitos humanos Danny Rayman voltava para seu apartamento na Holanda sentindo-se angustiado e impotente depois de ter ido a um protesto na embaixada chilena. Longe da sua casa em Santiago, ele testemunhava –pelas redes sociais– a brutalidade da polícia contra os manifestantes que clamavam por uma vida digna na maior onda de revolta social no Chile desde a resistência à ditadura de Pinochet.

Danny entrou em ação: criou um arquivo digital para preservar os conteúdos compartilhados no Twitter e Facebook. Seu objetivo era que esse material pudesse ser útil para os esforços futuros por justiça e reparações. Trabalhando colaborativamente com pesquisadores da Datos Protegidos, uma ONG de privacidade digital no Chile, Danny recebeu, verificou, classificou e arquivou centenas de videos da violência policial que acontecia diariamente no país.  A iniciativa foi chamada de Testigo en Línea (testemunha online).

Todos os dias, o grupo trabalhava até as altas horas da madrugada, cuidadosamente revisando os conteúdos e assistindo a um fluxo incessante de imagens e vídeos, muitos com imagens fortes, das cenas de violência nas ruas do Chile. Foram seis meses totalmente dedicados a essa missão.

Quando a pandemia chegou, a equipe do Testigo en Línea enfrentou uma situação ainda mais grave: a convergência do toque de recolher que foi imposto durante os protestos com as regras da quarentena por causa do coronavírus. Danny e sua equipe estavam acostumados a jornadas longas e solitárias atrás das telas de seus computadores, mas ninguém poderia prever tamanha incerteza.

A uns 8 mil quilômetros de distância, em Berkeley, na Califórnia, a nossa equipe de estudantes pesquisadores do Centro do Laboratório de pesquisa de Direitos Humanos da Universidade de Califórnia de Berkeley (HRC Lab) também enfrentavam as crescentes dificuldades de fazer investigações de direitos humanos ao trabalharem confinados de suas casas. Assim como a equipe chilena, os pesquisadores dos Estados Unidos trabalhavam com conteúdos relacionados à violência policial e, posteriormente, às tensões em torno das eleições no país.

À medida que fomos aprendendo sobre as técnicas de investigação em fontes abertas para encontrar e verificar videos e fotos sobre violações de direitos humanos, ficamos horas pensando no trauma enfrentado pelos nossos parceiros, no trauma secundário causado aos que assistiam e catalogavam essas imagens tão difíceis e também discutindo formas em que poderíamos nos proteger. Sabemos que o trauma pode causar impactos profundos, tanto para quem vive a violência diretamente como também para quem testemunha essas cenas nas redes sociais, sejam pesquisadores, ativistas, ou usuários das plataformas sociais.

Depois de meses de colaboração entre o Testigo en Linea e a nossa equipe no HRC Lab, conversamos com pesquisadores das duas equipes sobre os impactos de terem assistido a tantos conteúdos angustiantes enquanto estavam com isolamento social. Dessa vez, a convergência da nossa desconexão física mas, ao mesmo tempo, a nossa conexão online com os abusos de direitos humanos que estávamos investigando tornou esse trabalho especialmente difícil.

A seguir, uma sessão de perguntas e respostas entre as pessoas de nossas equipes dos Estados Unidos e do Chile, com perspectivas sobre como proteger a saúde mental e o bem estar enquanto se trabalha por direitos humanos nestes tempos.

Como que você e sua equipe lidaram com o trauma associado a este tipo de trabalho e como que este processo lhes afetou?

“Senti muita pressão porque eu estava tomando decisões por  conta própria e liderando uma equipe sem ninguém com quem discutir os assuntos que surgiam”- Danny

“Ser proativo com essas conversações é importante para garantir que o objetivo e a missão do trabalho não fiquem esquecidas. Tentamos trabalhar juntos pelo Zoom mesmo quando não estamos falando nada. O fato de trabalhar lado a lado faz a diferença porque você sente o respaldo de uma pequena comunidade que te apoia”- John

“Muitas pessoas que trabalham nessa área como voluntários não têm nenhum tipo de treinamento de resiliência. Precisamos ter grupos em que as pessoas possam falar sobre o que estão vendo, talvez receber algum tipo de apoio emocional, inclusive terapia quando os efeitos se repercutem na nossa vida diária, o que é algo que acontece. Olhando para trás, teria sido importante ter tido algum tipo de capacitação ou apoio, o que definitivamente não tivemos”. – Ignacio

“Apoiar a equipe também tem a ver com ter uma boa formação técnica. Se somos melhores no trabalho de verificação podemos fazer as coisas de um jeito mais eficiente, o que também é uma forma de nos cuidar, e uma boa estratégia de resiliência”. – Danny

Quais mudanças vocês tiveram que fazer ao trabalhar durante a quarentena?

“O confinamento tem sido muito diferente porque durante os protestos o nosso confinamento era o toque de recolher. Não podíamos sair. Agora não queremos sair. É diferente porque eu não quero que as pessoas saiam, enquanto que durante o levante social era o contrário, estávamos restritos mas felizes de poder sair durante o dia para nos expressar e fazer pressão”.- Ignacio

“Moro com crianças pequenas, se eu tenho uma reunião sobre um tema sensível, saio para o quintal ou vou para outro quarto. Se eu realmente preciso de um tempo privado espero até bem tarde à noite para trabalhar, lá pela meia noite”. – John

“Antes do Covid, era divertido estar no meu escritório porque havia estudantes entrando e saindo o tempo todo e pessoas trabalhando ou estudando.  Eu descia as escadas para ir às reuniões ou as pessoas subiam aqui para tê-las, tinha muita interação e conexão pessoal, muito caos e longas horas de trabalho também. Ainda assim, não era tão cansativo como é hoje, fazendo todo meu trabalho no computador”. – Andrea

Qual aspecto do seu trabalho te deixa mais transtornado?

“Para mim é bem diferente ouvir um áudio ou gritos numa língua que conheço, especialmente quando te remete a uma sensação de estar casa.  É diferente quando trabalho em outros projetos em que não entendo nada do idioma”. – Wendy

“Ver pessoas comuns virando monstros na forma de se expressar nas redes sociais foi muito impressionante, e até hoje é difícil de entender como isso acontece. Não sabia que eu morava num país que era capaz de mostrar esse tipo de resposta a qualquer coisa”. – Ignacio

“Os meus maiores gatilhos são conteúdos de áudio e referências geográficas de lugares específicos em que eu já fui no Chile. Ouvir gritos e choros quando as pessoas estão sendo detidas e levadas em viaturas da polícia é particularmente difícil. Além disso, percebi que não costumo mais pegar casos relacionados a pessoas encarceradas ou ferimentos oculares depois de ter trabalhado no caso do (Gustavo) Gatica”. – Sofia.

“Uma coisa que falamos em relação à resiliência é o protagonismo e saber que você tem controle. Eu acho que grande parte desta pandemia trouxe a sensação de que tudo é muito incerto e que não temos o controle. Não podemos nos proteger necessariamente, nem proteger a quem amamos”. – Andrea

“Há o medo deste trabalho ser descoberto, especialmente porque eu poderia ter problemas para renovar meu passaporte russo ou porque isso poderia afetar negativamente a minha família na Rússia” – Danil

Como este trabalho tem lhe afetado?

“Eu tinha dificuldades para dormir, chorava com frequência, acho que eu tive um certo grau de depressão pois eu estava em estado de choque. Principalmente no começo, foi extremamente cansativo estar exposto todos os dias aos abusos de direitos humanos que ocorriam no meu próprio país, na minha própria época, não em outro lugar ou no passado…ver os militares marchando pelas ruas foi horrível”. – Ignacio

“Eu me preocupo com os efeitos desse trauma secundário e quando eles vão chegar, não sei se é um calo ou se está mais para uma bomba-relógio”. – Danil

O que você faz para se cuidar?

“Tento ser gentil comigo mesma, reconhecer e aceitar talvez eu seja menos produtiva durante a quarentena e tudo bem. Quando estava fazendo o trabalho de verificação antes da quarentena, era sabia o quanto eu gostava de andar de bicicleta e eu valorizava a pedalada até a biblioteca, onde eu podia fazer o trabalho num espaço melhor. Também comia um pequeno doce ou chocolate à noite. Lembro que uma vez pensei: ‘Não vou fazer isso todos os dias mas como estamos em meio de um momento estressante e aterrorizante, posso me dar este pequeno presente’ ”. – Josefina

“A resposta politicamente correta seria: sim, limitei a quantidade de trabalho que fazia todos os dias. Parava a cada 45 minutos para comer ou beber algo. Procurei dormir bem. Lia sobre assuntos totalmente diferentes antes de ir dormir. Tudo coisas muito óbvias que deveríamos ter feito e não fizemos, e pensando agora acho que teriam sido absolutamente necessárias”. – Ignacio

“Dar abraços é muito importante, assim como praticar a meditação para ser mais consciente de si mesmo e dos nossos arredores”. – Lili

Por que você faz este trabalho?

“Talvez poderíamos dizer para os nossos supervisores que não nos sentimos confortáveis com a carga de trabalho, mas eu sentia uma grande motivação para continuar adiante porque estava muito comprometida com ajudar neste trabalho. Mesmo indiretamente, sem me manifestar nas ruas, eu sentia que isto era muito importante fazer”. – Wendy

“Como alguém que tem muita ansiedade social, protestos costumam ser difíceis para mim porque tenho muito medo das multidões, então esta é uma forma que eu posso contribuir sem deixar de participar”. – Lili

Você tem algum aprendizado que gostaria de compartilhar?

“Eu acho que é muito benéfico olhar para o passado em busca de inspiração em relação à experiência humana. Ajuda a se colocar dentro do panorama maior”. – Sofía

“Quando eu estava no exterior (na Holanda) começando o Testigo en Línea eu me sentí muito isolado no início. Mas com o tempo me dei conta que meu território e minha comunidade eram a equipe do Testigo en Línea. No fim, estar longe de casa pode ser difícil mas sempre que tiver uma equipe ou uma comunidade na qual você pode confiar e se amparar, o trabalho será mais fácil de se realizar”. – Danny

“Eu acho que todas as equipes deveriam ter apoio psicológico, tanto individualmente como coletivamente. É fundamental contar com um sistema de apoio desde o começo”. – Josefina

“Quanto mais desgastados estivermos, mais vulneráveis somos, tanto na nossa própria saúde mental quanto no trabalho. Às vezes é melhor ir mais profundo do que tentar abraçar mais longe… Ainda não tentei fazer isso, mas é o que diz a teoria!” – Andrea

“Você precisa se cuidar. Ponto. Três exclamações. Este tipo de trabalho requer grande atenção aos detalhes, então você tem que estar num lugar em que possa ir com toda a velocidade e precisão.  Não adianta mergulhar com tudo e com toda a velocidade porque isso não vai ajudar ninguém. Não se deixe levar pelo sentimento de culpa nem por suas emoções — não é sobre você”. – Lili

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Do Chile aos Estados Unidos, estar constantemente ligado  durante a pandemia aumentou significativamente aa consciência geral sobre questões sociais, particularmente em relação à violência policial e o abuso de poder. Quando realizamos investigações em fontes abertas, somos testemunhas das violações de direitos humanos pelas nossas telas e ao mesmo tempo, pelas nossas próprias janelas.

O senso comum sobre o cuidado pessoal não é o suficiente para abordar os efeitos dominó dos traumas que encontramos ao fazer este trabalho. Temos que superar a noção comum de autocuidado, que promove uma receita padronizada de práticas de autocuidado, mostra a resiliência como uma máscara facial à venda online e encarrega as pessoas pela responsabilidade por práticas de resiliência isoladas mesmo nas circunstâncias mais difíceis.

O que aprendemos nessa troca com nossos colegas no Chile e com a nossa equipe durante a pandemia, a explosão social e a quarentena é que não podemos cuidar de outras pessoas se não cuidarmos de nós mesmos.