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O direito de filmar reconhecido pelas Nações Unidas

Artigo publicado originalmente no blog da Witness em agosto de 2018.

Quando a WITNESS fala sobre o “Direito de Filmar”, estamos nos referindo ao direito de pegar uma câmera ou telefone celular e filmar os militares e policiais sem medo de prisão, violência ou outras retaliações. [1] Embora o direito de filmar seja fundamental para o uso do vídeo para os direitos humanos e seja mantido por lei ou decisões judiciais em alguns países, as leis e práticas de outros países violam explicitamente esse direito.

Quando os defensores dos direitos humanos e pessoas comuns que documentam irregularidades precisam esconder suas câmeras ou filmar em segredo, seu trabalho se torna difícil, ou mesmo impossível. E para muitas pessoas, exercer regularmente seu direito contemporâneo à liberdade de expressão envolve pegar sua câmera ou celular e filmar. Desde o uso do vídeo como prova para mostrar violações de direitos humanos por militares e policiais na favela da Maré, no Rio, até assassinatos cometidos pela Alfândega e Patrulha de Fronteira nos Estados Unidos, o Direito de Filmar é essencial. Sem ele, jornalistas têm que trabalhar com grande risco e filmar secretamente, como é o caso dos esforços para combater a desinformação sobre o povo Rohingya, em Mianmar. Como uma resolução recente do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas deixa claro, esse direito é protegido pela lei internacional de direitos humanos.

Como as Nações Unidas falam sobre o Direito de Filmar?

O Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas promoveu esse direito explicitamente na resolução A/HRC/38/L.16, sobre “A promoção e proteção dos direitos humanos no contexto de protestos pacíficos”. A resolução, apresentada pela Costa Rica e pela Suíça, também continha outros textos importantes de apoio aos direitos das testemunhas e de pessoas defensoras dos direitos humanos.

Essa não é a primeira vez que as Nações Unidas reconhecem o Direito de Filmar, mas essa resolução reforça o entendimento de que o direito está protegido e deve ser respeitado. Um relatório de 2015 sobre “O uso de tecnologias de informação e comunicação para garantir o direito à vida” de Christof Heynes, ex-relator especial sobre execuções extrajudiciais, sumárias ou arbitrárias, orienta os Estados a respeitar e proteger o “direito do indivíduo de fazer uma gravação de um evento público, incluindo a conduta de agentes da lei”. Em um relatório conjunto de 2016, Heynes foi acompanhado por Maina Kiai, ex-relator especial sobre os direitos à liberdade de reunião pacífica e de associação em um relatório sobre a gestão adequada de assembleias para expandir isso:

Todas as pessoas têm direito a observar e, por extensão, monitorar reuniões. Este direito deriva do direito de buscar e receber informações, protegido pelo artigo 19 (2) do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. O conceito de monitoramento engloba não apenas o ato de observar uma reunião, mas também a coleta ativa, verificação e uso imediato de informações para tratar de problemas de direitos humanos.

O relatório também observou que isso inclui explicitamente a aplicação da lei do direito de filmar e que “o confisco, apreensão e/ou destruição de notas e equipamentos de gravação visual ou de áudio sem o devido processo devem ser proibidos e punidos”.

A resolução

A Suíça apresentou esta resolução na reunião do Conselho de Direitos Humanos de 6 de julho observando: “O número crescente de protestos públicos talvez reflita uma crise global na democracia representativa e uma busca por novas formas de participação política” e que “quaisquer que sejam as razões que levam as pessoas nas ruas, tudo deve ser feito para garantir que os direitos humanos sejam protegidos durante os protestos pacíficos”.

Nós concordamos. Agora, mais do que nunca, a participação em protestos deve ser protegida – embora o Direito de Filmar não deva se limitar a esses momentos. Como observamos, em um mundo com espaço cada vez menor para a sociedade civil, a capacidade de pegar uma câmera ou telefone e filmar, combater a desinformação oficial e preservar evidências na esperança de que a justiça seja feita no futuro, é particularmente importante.

A resolução delineou muitas maneiras pelas quais os estados devem proteger a participação em protestos pacíficos. As resoluções mencionam explicitamente o direito de filmar em quatro lugares separados. Veja a seguir:

O Conselho de Direitos Humanos:

  • Recorda os direitos à liberdade de reunião pacífica e de associação, que abrangem organizar, participar, observar, monitorar e registrar assembleias,
  • Expressa sua preocupação com a criminalização, em todas as partes do mundo, de indivíduos e grupos apenas por terem organizado, participado ou observado, monitorado ou registrado protestos pacíficos,
  • Convoca todos os Estados a prestar atenção especial à segurança dos jornalistas e trabalhadores da mídia que observam, monitoram e registram protestos pacíficos, levando em consideração seu papel específico, exposição e vulnerabilidade, …
  • Sublinha a necessidade de abordar a gestão de assembleias, incluindo protestos pacíficos, de modo a contribuir para a sua conduta pacífica e prevenir lesões, incluindo as que conduzem à incapacidade e perda de vida de manifestantes, aqueles que observam, monitoram e registram tais assembleias , espectadores e funcionários que exercem funções de aplicação da lei, bem como qualquer violação ou abuso de direitos humanos, para garantir a responsabilidade por tais violações e abusos e para fornecer às vítimas acesso a uma remediação e reparação.

A resolução também deixa claro que o Direito de Filmar não se limita a jornalistas e trabalhadores da mídia, observando que usuários da Internet e defensores dos direitos humanos têm um papel importante a desempenhar na documentação de violações de direitos humanos.

Além de abordar o Direito de Filmar, a resolução continha outras disposições importantes. Ela observa a tendência crescente dos governos de bloquear toda ou parte da Internet, especialmente em “momentos políticos importantes”, e conclama os estados a #KeepItOn – ou seja, manter o acesso à Internet como a coalizão #KeepItOn tem pedido. Esta disposição também apoia o Direito de Filmar, pois a capacidade de compartilhar vídeos e, em particular, transmitir ao vivo ou narrar eventos, à medida que eles acontecem, está intimamente ligada ao Direito de Filmar.

A resolução também observa a necessidade de poder usar as TIC (Tecnologias de Informação e Comunicação) de forma segura e privada. É importante ressaltar que “embora uma assembléia seja geralmente entendida como uma reunião física de pessoas, as proteções dos direitos humanos . . . pode se aplicar a interações análogas que ocorrem online”.

Como a WITNESS e nossos parceiros têm dito, a moderação de conteúdo irresponsável por plataformas de mídia social pode facilmente silenciar as vozes dos defensores dos direitos humanos e prejudicar a liberdade de expressão. À medida que o trabalho como o recente relatório sobre regulamentação de conteúdo do Relator Especial sobre Liberdade de Expressão continua, esperamos ver a ONU (Organização das Nações Unidas) expandir essa importante afirmação.

O que vem a seguir sobre o Direito de Filmar?

Em alguns países, o Direito de Filmar é explicitamente reconhecido e é importante garantir que isso não mude e que o direito seja realmente respeitado pelas autoridades policiais. Por exemplo, nos Estados Unidos, todos os Tribunais Federais de Apelação que decidiram esta questão determinaram que, de acordo com a Primeira Emenda da Constituição, os indivíduos têm o direito de filmar os agentes da lei cumprindo suas funções em público. Mas essas decisões não impediram a polícia de apreender câmeras, excluir vídeos e muito mais – especialmente quando estão sendo filmados por pessoas não brancas. Na África do Sul, a Constituição deve proteger o Direito de Filmar, e a Ordem Permanente 156 do Serviço de Polícia Sul-Africano orienta a polícia a respeitar o direito da mídia de filmar, “mas é vaga sobre quem se qualifica. [A campanha South African Right to Know] acredita que isso deve incluir jornalistas cidadãos – qualquer pessoa com uma câmera de celular”. Na prática, muitas vezes esse direito não é respeitado, mesmo para os representantes da mídia.

Contudo, também há muitos lugares onde o registro da aplicação da lei é expressamente proibido e outros lugares onde a lei não é clara – incluindo grande parte da União Europeia. Por exemplo, na Espanha, uma lei de “segurança pública” de 2015, conhecida como Ley Mordaza (a Lei da Mordaça), “restringe a gravação de vídeo de policiais com multas de até 30.000 € impostas a quem divulgar imagens”. Desde a sua aprovação em 2015, a Espanha teve vários episódios violentos de violações dos direitos humanos pela polícia, principalmente durante a votação pela independência da Catalunha, e a lei foi claramente usada para silenciar a dissidência política. E na Palestina, o parlamento israelense está tentando aprovar uma lei que proíbe expressamente a filmagem das Forças de Defesa de Israel (IDF), mesmo com vídeos documentando abusos de direitos humanos contra palestinos continuando a causar protestos internacionais sobre abusos de direitos humanos cometidos pela IDF. 

Esta resolução consolida a importância do Direito de Filmar sob a lei internacional de direitos humanos nas assembléias – mas achamos que é necessário mais. Deve ficar claro que o Direito de Filmar se aplica a todas as interações com as autoridades policiais e militares — em outras palavras, o Direito de Filmar esteja em vigor durante o policiamento diário ou atividades militares, não apenas em assembleias. Além disso, as leis que proíbem filmagens devem ser derrubadas em favor de leis que defendem os direitos humanos, e os países que tentam violar esse direito devem ser responsabilizados.

No entanto, ativistas e a sociedade civil também devem discutir o que realmente significa o Direito de Filmar. Muitas questões existem, desde se esse direito inclui o direito de publicar, inclusive na Internet, se o direito abrange legisladores ou outras figuras públicas, se significa apenas o direito de filmar com uma câmera ou se estende a outras tecnologias como drones . Nos próximos meses, a WITNESS se concentrará em responder a essas perguntas e destacar tanto as muitas violações desse direito quanto os casos em que o direito serviu para expor violações de direitos humanos.