Carta aberta à revista New York em resposta ao artigo sobre Olimpíadas sem desastres

{Read this open letter in English here}

Caro Alex Cuadros,

Você levanta pontos importantes no seu artigo sobre os medos exagerados em torno das Olimpíadas no Rio.

Mas para emprestar do seu título, o seu texto também “revela algumas coisas sobre a mídia”, principalmente a mania persistente de definir certas coisas como “desastres” (ataques hipotéticos do ISIS durante os Jogos, por exemplo) e, ao mesmo tempo, ignorar outros desastres verdadeiros.  Estima-se que 70 mil pessoas perderam suas casas no Rio nos anos em que a cidade se preparou para sediar os Jogos – isso não é um desastre?  Pelo menos 2.500 pessoas, a maioria moradores de favelas, foram assassinados pela Polícia desde que o Rio foi anunciado como sede dos Jogos em 2009 – isso não é um desastre?  O governador declarou estado de calamidade pública e disse que talvez tenha que fechar hospitais e atrasar pagamentos de servidores públicos para poder pagar a conta da promessa de segurança durante as Olimpíadas — você consegue imaginar se este desastre acontecesse aqui em Nova York?

Poucas horas depois que seu texto foi publicado ontem pela manhã, moradores de pelo menos quatro favelas diferentes do Rio estavam usando as redes sociais para denunciar que estavam sitiados dentro de suas próprias casas, com medo de sair para trabalhar diante da TRILHA SONORA DIÁRIA de tiros que eles vivenciam.  Até os pais da medalhista de ouro Rafaela Silva ficaram presos dentro de casa uma noite antes de ela subir ao pódio, sem conseguir sair com segurança em meio à guerra (obrigada Jonathan Watts por cobrir isso).

Nos últimos meses, amigos do Rio têm compartilhando comigo áudios desesperados no WhatsApp, vídeos horríveis de pessoas inocentes sendo mortas em favelas da cidade, fotos de casas marcadas de tiros, e imagens de crianças pequenas deitadas nos corredores de suas escolas, esperando os tiros acabarem para poder voltar à sala de aula.  Tudo a poucos quilômetros de onde todas as câmeras do mundo apontam suas lentes enquanto eu digito estas palavras. ISSO é um desastre.

Você mesmo já cobriu esses temas, e admiro reportagens que você fez sobre as promessas não-cumpridas do legado olímpico em veículos como o The Atlantic e o The New Yorker.  Por isso fiquei ainda mais chocada de ler suas palavras hoje.  Difícil de acreditar que um jornalista como repetiria a frase do Eduardo Paes de que o Rio é “um dos lugares mais seguros para se estar hoje.”  Será que você quis se referir ao Rio em que seus Brasilionários circulam – Ipanema, Leblon, Barra da Tijuca, Lagoa?  Porque milhares de moradores de favelas estão literalmente na linha de fogo (e se você não acredita neles basta olhar os alertas recentes da Anistia Internacional Brasil, ou a denúncia enviada à ONU ontem mesmo pela Justiça Global justamente sobre este ponto).

Há algumas semanas o jornalista Leonardo Sakamoto escreveu um texto brilhante em que ele desafiava leitores a fazer um teste e advinhar se certos crimes tinham sido cometidos pelo ISIS ou pela polícia brasileira.  Por favor leia este texto, espero que ajude a ampliar a sua definição da palavra desastre.

Filas longs, zika, águas contaminadas, promessas quebradas e corrupção são, sim, histórias importantes a serem contadas pela imprensa.  E eu entendo (e compartilho) a vontade de procurar o final feliz numa pauta que deveria trazer tanta alegria como as Olimpíadas.  Mas por favor, por favor, te imploro, por favor: NÃO ignore nem minimize a desastrosa violência cometida contra moradores de favelas, que vem sendo exacerbada pelas Olimpíadas.  Só porque não foi um desastre para os patrocinadores e turistas, não significa que não foi um desastre para milhares de cariocas.  E não só os que estão sitiados em suas casas neste exato momento, mas também para os servidores públicos que não receberão salário nos próximos meses, ou os cidadãos que dependem da já precária rede pública de saúde e educação.

Se essas Olimpíadas fossem em Paris ou Miami e 70.000 pessoas tivessem sido expulsas à força de suas casas e 2.500 pessoas inocentes tivessem sido assassinadas pela polícia, certamente a narrativa predominante da mídia reconheceria isso como um desastre verdadeiro. Talvez eles até usassem letras maiúsculas como o jornal popular Daily News, DESASTRE.

Este é o grande ponto cego da mídia que deveria estar no centro do seu artigo.  E um ponto cego que você acaba de reforçar, querendo ou não.

Sinceramente,

Priscila Néri,
Gerente sênior de programas, WITNESS