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Fronteiras Cruzadas: Vídeo como dispositivo anti-xenoracismo

O Fórum Internacional Fronteiras Cruzadas discute a experiência do projeto Videolab_Conexões Migrantes junto à WITNESS

de: Daniel Perseguim* | Hortense Mbuyi* | Karina Quintanilha* | Vensam Iala*

A migração forçada é atualmente um dos principais fenômenos sociais da barbárie capitalista. Enquanto o número de solicitações de refúgio bate recordes anuais desde a virada do século, vemos intensificar os processos geopolíticos e tecnológicos do racismo de Estado por meio da criminalização da migração, das políticas de indocumentação, das restrições infralegais ao direito de refúgio e tantas outras formas de violência contra as “populações indesejáveis”, sobretudo corpos não brancos, negros, indígenas, latinos, asiáticos e periféricos, colocando novos desafios para visualizar um horizonte para além das opressões de classe, raça, gênero, etnia.

Diante dessa conjuntura de crise, o Fórum Fronteiras Cruzadas tem buscado  trabalhar junto aos movimentos migrantes e afrodiaspóricos em São Paulo, propondo o audiovisual como dispositivo de conexão cultural e de defesa de direitos no contexto global de crescente racismo e xenofobia, ou do que pode ser chamado de xenoracismo (xeno-racism, em inglês) como sugeriu o pensador antirracista Ambalavaner Sivanandan.

No contexto das lutas travadas por trabalhadores/as migrantes, o vídeo como dispositivo antirracista é sem dúvidas uma tendência, não apenas para visibilizar e denunciar as violências mas também para fazer uma disputa cognitiva — uma disputa não apenas de narrativas — sobre as fronteiras racializadas e sobre a condição mais precarizada e sem direitos desses grupos sociais. As disputas cognitivas entram em cena ao se notar que existe uma estética investigativa, onde o vídeo pode funcionar como documento e plataforma de engajamento.

Dessa forma, a proposta do vídeo como prova de violações a direitos humanos e como dispositivo para as lutas por justiça vem acumulando vitórias nas batalhas travadas por ativistas, defensores de direitos humanos e movimentos sociais mundo afora, como evidencia o trabalho da Witness. Como dispositivo de resistência e conexões culturais-afetivas, a produção de vídeos pode fazer a diferença na produção de evidências jurídico-políticas e nas disputas cognitivas sobre essas violências sistemáticas praticadas pelo sistema de “apartheid global” movido pelo xenoracismo, herança do sistema colonial europeu que criou a escravidão em massa, a diáspora africana e o genocídio indígena.

Segundo dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) atualmente são ao menos 82,4 milhões de pessoas em situação de deslocamento forçado pelo mundo, sendo a maioria mulheres e crianças do chamado Sul global. Estudiosos do fenômeno da migração forçada apontam para trágicas tendências: migração de retorno (pela via da deportação); mortes e tortura nas fronteiras; tráfico internacional de pessoas e deslocamentos cada vez mais relacionados aos acelerados processos de despossessão, catástrofes ambientais e desemprego. 

 

Por um território audiovisual sem fronteiras: #AntiXenoRacismo em debate

O audiovisual permite infinitas possibilidades como ferramenta para criar novos espaços, ideias e subjetividades a partir das lutas que atravessam territórios e culturas das pessoas migrantes, deslocadas, expulsas, na diáspora. Vale mencionar recentes produções audiovisuais como o filme O Novo Evangelho (Itália), exibido na Mostra Ecofalante de Cinema (2021), e o filme Era Hotel Cambridge (Brasil), que esbarram em questões da precarização da condição migrante – falta de documento, exploração do trabalho, moradia, domínio do idioma, racismo e xenofobia e a complexa relação com as pessoas do país de destino. 

Para além dos filmes, estão se multiplicando os exemplos do vídeo-ativismo no contexto migratório, como os impactantes registros das Caravanas Migrantes, partindo da América Central, e do movimento San Papiers, formado principalmente por trabalhadores africanos indocumentados na França, além das mobilizações nos Estados Unidos #AbolishICE pela abolição dos ICE (Immigration and Customs Enforcement’s, Imigração e Alfândega dos EUA) em que vídeos têm servido como prova das condições desumanas impostas a imigrantes presas/os, incluindo crianças (segundo o Global Detention Project, no mundo todo, existem mais de 1.395 prisões de imigrantes). 

Em São Paulo, capital multicultural, em diálogo com os movimentos internacionais e produções artísticas, temos buscado potencializar o uso do vídeo como ferramenta anti-xenorracista por meio de campanhas na mídia e oficinas organizadas pelo Fronteiras Cruzadas desde 2017 na Universidade de São Paulo (USP), e agora também na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), reunindo coletivos de migrantes, grupos de pesquisa, advogados/as, movimentos sociais, ativistas, artistas e organizações de direitos humanos para promover ações e debates qualificados sobre as (i)mobilidades globais. 

Nossas experiências com o audiovisual enquanto dispositivo de conexão cultural e mobilização política  tem acontecido por meio de projetos artísticos – como “vídeo-cartas: conexões migrantes” com apoio do Sesc – e por meio de campanhas de solidariedade – como a campanha #NduduzoTemVoz, que se iniciou com um vídeo contra a expulsão da sul-africana Nduduzo Siba pelo Ministério da Justiça brasileiro. Na campanha pela permanência da Nduduzo no Brasil, o vídeo foi utilizado para engajar as pessoas através de um abaixo-assinado e, posteriormente, juntado ao processo judicial que busca garantir o seu direito como previsto na Lei de Migração (Lei 13.445/2017). 

Como desdobramento dessa rede de solidariedade, a série de vídeos produzidos em parceria com a Witness no projeto Videolab_Conexões Migrantes identificou a necessidade de refletir sobre a produção da xenofobia e do racismo no Brasil. 

Na #CampanhaSomosJoãoManuel, o vídeo foi utilizado para estabelecer novas conexões afrodiaspóricas e produzir informação qualificada sobre a realidade de imigrantes negros/as em São Paulo, reivindicando justiça e memória pelo trabalhador angolano João Manuel, frentista de um posto de gasolina que foi vítima fatal do xenoracismo durante a pandemia no conjunto A.E.Carvalho, zona leste de São Paulo.

A proposta parte de depoimentos de amigos de João Manuel e de ativistas envolvidos na #CampanhaSomosJoãoManuel. Segundo uma das testemunhas, um amigo de João Manuel presente no momento do ataque e que também ficou ferido,

“Nós estávamos falando em nossa língua e o cara estava querendo entrar na conversa. Começamos a falar da iniciativa do governo que estava ajudando muitas pessoas… E acho que ele ficou irritado porque os estrangeiros, africanos, estavam pegando o auxílio (emergencial), ficou irritado. Depois o cara falou que ia nos matar. Nós falamos: matar como? Nós somos irmãos. Ele só falou isso: eu sou brasileiro, não sou seu irmão”. 

O assassinato a sangue frio de João Manuel gerou ampla comoção e solidariedade  transatlântica, por meio de vaquinhas online e assessoria jurídica com apoio de organizações de direitos humanos e movimentos sociais, em apoio à viúva e três filhas em Angola, que seguem na esperança de alguma reparação no processo criminal e trabalhista.

Link para playlist aqui 

As gravações aconteceram na Ocupação 9 de Julho respeitando os protocolos de prevenção da Covid-19. Foram entrevistados/as: Regina Lucia dos Santos, militante histórica do Movimento Negro Unificado (MNU); Vensam Iala, presidente da associação da Guiné-Bissau e fundador do Visto África; Hortense Mbuyi; e outros dois africanos sobreviventes do ataque à João Manuel. As gravações, com curadoria de Karina Quintanilha e Daniel Perseguim, do Fórum Fronteiras Cruzadas, contaram  com o diretor Wellington Amorim – produtor audiovisual e ativista periférico; produção de Natalie Hornos e Hortense Mbuyi; registro em vídeo de Mari Fedo e Giovanni Francischelli no som direto.

Com o rico material, foram produzidos quatro vídeos como parte do engajamento pelo #VidasImigrantesNegrasImportam e pela #CampanhaSomosJoãoManuel, por meio da publicação cruzada em diversas plataformas: @FronteirasCruzadas (Youtube, Instagram e Facebook), @WitnessBrasil (Instagram e Facebook) e @VistoAfrica (Instagram), um reconhecido canal para “conscientizar e combater os estereótipos reducionistas dos Povos das Áfricas”.  Na Semana da África, quando completou um ano da luta por memória e justiça para João Manuel, organizamos a Live Vidas Imigrantes Negras Importam, protagonizada por ativistas e artistas das diásporas e do Brasil. 

Além desses vídeos, o projeto Videolab_Conexões Migrantes também promoveu a oficina “Audiovisual em defesa do trabalho ambulante” direcionada ao grupo formado pelo Seminário Ambulantes e Cidade, com o apoio do Fronteiras Cruzadas, Witness, Grupo de Pesquisa Cidade e Trabalho, Fórum dos Ambulantes, StreetNet, Unicab, Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos. A oficina foi ministrada pelos vídeo-ativistas Vito Ribeiro e Daniel Perseguim. Além da proposta de articular a Campanha #MercadoVivo, a oficina resultou na gravação de 8 vídeo-cartas pelos/as trabalhadores/as ambulantes, ameaçados de despejo nos mercados populares de São Paulo, sendo a maioria migrantes internos e imigrantes arrastados para o mercado informal diante do drástico cenário de desemprego no país, agravado pela pandemia e ainda sob cotidiana repressão policial. Posteriormente à oficina, também participamos do Webinar Street Vendor Struggles, organizado pela Women in Informal Employment: Globalizing and Organizing (WIEGO), onde destacamos as metodologias de trabalho com o audiovisual como ferramenta de luta na defesa de direitos humanos.

Novos contextos: #VidasImigrantesNegrasImportam

No contexto de crise multidimensional em que o governo brasileiro de extrema-direita tem aproveitado para passar a boiada também nos direitos das pessoas migrantes, a violência contra o angolano João Manuel se tornou um marco da condição de migrantes não brancos durante a pandemia no Brasil. O passar a boiada nos direitos das pessoas migrantes promoveu aberrações jurídicas na política migratória (como o resgate de normativas com a ideia de imigrantes como “pessoas perigosas” para fins de deportação sumária), o ressurgimento de discursos abertamente racistas e um intensificado processo de criminalização étnico-racial da pobreza. Outro caso emblemático foi evidenciado pela prisão de Falilatou Stele, ambulante, refugiada do Togo, presa injustamente durante 6 meses no processo judicial que prendeu o maior número de pessoas na história do Brasil, com uma quantidade inédita de imigrantes acusados de “estelionato emocional”.

É nessa nova conjuntura, e a partir das diversas mobilizações dos movimentos imigrantes, das mulheres, dos ambulantes e da negritude, que se constitui a articulação em rede pelo #VidasImigrantesNegrasImportam, que ganhou maior repercussão junto à Campanha Liberdade para Falilatou. Conectados com as mobilizações antirracistas, no Brasil e no mundo, as redes solidárias por João Manuel e Falilatou encamparam essas lutas por compreender a gravidade da situação. 

Não por acaso, a Campanha #LiberdadeParaFalilatou se tornou pública durante as manifestações do dia 13 de maio, Dia Nacional de Denúncia Contra o Racismo, convocada pela Coalizão Negra por Direitos. A campanha mobilizou entidades de direitos humanos, movimentos sociais, fórum dos ambulantes, pesquisadores e parlamentares de esquerda, foram mais de 1.900 assinaturas por sua liberdade imediata. A mobilização ganhou destaque na Comissão de Direitos Humanos da Câmara de Vereadores de São Paulo, por meio de audiência pública, e na mídia – reportagem da Folha de São Paulo, Metrópoles, e do portal ÚltimoSegundo.IG, Migramundo e Alma Preta.

São exemplos de lutas em que os vídeos e as novas mídias tem cumprido papel central para a formação de redes sociotécnicas, produzindo uma série de desdobramentos como audiências públicas, debates, manifestações e intervenções em torno do enfrentamento das opressões e da defesa do #VidasImigrantesNegrasImportam.

Ao nos engajarmos na produção de vídeo, refletindo criticamente sobre o atual contexto social, conseguimos revelar um debate qualificado sobre as novas formas de resistência, como as lutas contra o xenoracismo. Trata-se de nos apropriar do vídeo como uma ferramenta de trabalho em rede junto aos movimentos sociais para pôr fim às opressões e as suas distintas faces, a exemplo do assistencialismo que naturaliza as violações contra as populações deslocadas como “casos isolados”, e alimentam a falsa ideia de um fluxo migratório “ordenado e regular”. Assim, o vídeo pode nos conectar historicamente, afetivamente e esteticamente às revoltas radicais contra as opressões racistas, machistas, homofóbicas em nossa Améfrica Ladina, como nos propõe Lélia Gonzalez, e por um mundo sem fronteiras para o qual nos convoca Achille Mbembe.

 

*Sobre os/as Autores/as

Daniel Perseguim é midia-designer, formado em Jornalismo e mestre em Artes, com experiência em audiovisual e campanhas junto a movimentos sociais. Integra o Fórum Internacional Fontié ki Kwaze – Fronteiras Cruzadas.

Hortense Mbuyi é advogada especializada em direitos econômicos e sociais, idealizadora do Espaço Wema – de gastronomia e cultura africana – e Conselheira Municipal dos Imigrantes de São Paulo. Integra o Fórum Internacional Fontié ki Kwaze – Fronteiras Cruzadas.

Karina Quintanilha é advogada com especialização em Migração e Refúgio na perspectiva de direitos humanos (UNLa), e doutoranda em Sociologia (Unicamp). Integra o Fórum Internacional Fontié ki Kwaze – Fronteiras Cruzadas, e coordena o projeto de extensão Formação de Rede Sociotécnica com Imigrantes e Refugiados (Unicamp).

Vensam Iala é artivista, formado em Letras, fundador do Visto África e presidente da Associação da comunidade da Guiné-Bissau em São Paulo. Integra o Fórum Internacional Fontié ki Kwaze – Fronteiras Cruzadas.