Complexo do Alemão: a Praça do Samba virou Praça de Guerra

Invasões às casas de moradores e confrontos constantes transformaram a Praça do Samba, antes local de festas no Complexo do Alemão, em cenário de guerra

Há mais ou menos 3 meses a polícia militar da UPP do Complexo do Alemão, sob a ordem do major Leonardo Zuma, comandante da UPP Nova Brasília, comandou uma ofensiva contra os moradores da localidade conhecida como Praça do Samba.

Em uma iniciativa ilegal policiais arrombaram e invadiram dezenas de casas para usar suas lajes como base militar e ponto de ataque contra os traficantes. Em alguns casos, ocuparam o segundo andar das casas, com os moradores vivendo no primeiro piso, transformando a residência em alvo de tiros e aterrorizando a vida de famílias inteiras.

Policiais fizeram buracos nas casas para colocar os fuzis

A Praça do Samba não tem esse nome por acaso. É uma area tradicional da região para realização de festas de aniversário, pagodes, reuniões de vizinhos ou que simplesmente usavam o largo para colocar cadeiras na rua e conversar. “Era só lazer, a polícia acabou com a nossa paz” como disse Luiz (os nomes citados foram trocados por motivo de segurança) para logo depois entoar um samba que denuncia as mazelas enfrentadas pelos moradores das favelas.

Há duas semanas atrás organizações locais guiaram uma incursão pela área invadida com a presença de organismos de direitos humanos do governo e da sociedade civil. Além da presença de jornalistas nacionais e internacionais. O objetivo foi alcançado, as denúncias se tornaram públicas em diversos veículos de imprensa, e o major responsável pelas invasões foi chamado no Ministério Público para responder às questões.

O major alegou que as casas foram ocupadas para que sirvam de apoio para construir um posto de controle da PM na região, e alegou que as casas estavam vazias. No entanto diversos vídeos em redes sociais, inclusive um gravado pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro, mostra que o quê a polícia considerada “casas vazias”, são lajes e demais andares das casas que estão ocupadas e são usadas regularmente pelos moradores. Algumas casas com cerca de 13 pessoas vivendo, inclusive um número grande de crianças e idosos.

A Defensoria segue investigando o caso e exigindo que os policiais deixem os imóveis, no entanto não existe um prazo efetivo do comando da polícia, nem mesmo uma proposta de indenização pelos danos causados pelas invasões.

Perseguições e Ataques Virtuais

No curso da visibilidade das denúncias, Raul Santiago integrante do Coletivo Papo Reto (que atua denunciando as violações de direitos humanos no Complexo do Alemão), sofreu novos ataques. Imediatamente depois da repercussão na imprensa das invasões, uma série de perfis falsos de Facebook se passando por ele surgiram na internet tentando colocá-lo em risco na favela.

Coletivo Papo Reto sofre constantes ameaças por denunciar as ilegalidades no Alemão

Estes perfis publicavam fotos de traficantes segurando armas, com a clara intenção de fazer Raul parecer um X9 (informante da polícia), ou mesmo atacar sua credibilidade com as organizações de direitos humanos que acompanham e apoiam o trabalho do coletivo, o colocando como ‘incentivador do crime’. Além desses perfis, outro falso se passando por sua companheira, expôs ainda mais a intenção de gerar insegurança para a família do comunicador independente que atua diretamente em defesa dos direitos dos moradores.
Raul, diversos coletivos e organizações promoveram uma campanha para tirar do ar os perfis falsos, e verificar como “original” o perfil de Santiago junto a empresa Facebook. Desde então não surgiram novos perfis.

Fotos de celulares de moradores servem de boa memórias dos tempos de festas

Casas Invadidas Pela Polícia

Maria, moradora da região, declarou que encontrou dezenas de garrafas cheias de urina e sacolas com fezes na laje de sua casa. Resultado brutal e asqueroso da ocupação ilegal dos policiais. Antônia comentou que ficou sem subir ao segundo andar da casa por quase dois meses, por que policiais transformaram o andar em mais um ponto de ocupação, e inclusive usaram a geladeira como barricada para disparar. Márcia que vive com os pais idosos e um deles cadeirante, denuncia que uma cadeira de rodas foi roubada pelos policiais durante a invasão.
Um jovem comentou que o trailer de lanches do seu pai foi destruído pelos tiros da polícia. O trailer tem mais de 100 marcas de balas e todos os equipamentos para cozinhar foram danificados pelos disparos. Trazendo prejuízos à família que se mantinha com o negócio.
No mesmo beco, uma escada caracol desafia a realidade permanecendo de pé, mesmo estando completamente furada e destruída por centenas de tiros de todos os calibres. O morador sentado em frente à sua casa, em um raro momento de tranquilidade na região, disse: “Eu tenho que subir pra minha casa. O que posso fazer? Preciso usar a escada”.
Depois de entrar em algumas casas, fotografar marcas de bala, escutar diversas histórias de terror, de momentos em que moradores passaram deitados no chão, na parte “mais protegida” da casa, fica completamente evidente quem são as maiores vítimas do discurso de “Guerra às Drogas”. Em uma das casas, um menino de 8 anos estava vendo televisão enquanto conversávamos com sua família. Ele me olhou e disse: “Quando tem muito tiro a gente deita ali ó, tio. Eu as vezes ponho o travesseiro na cabeça também”, apontando pra um canto entre a cama e a parede do quarto.
Denúncia Internacional e Coleta de Provas

Cápsulas de fuzil e pistola deixada pelos policiais nas lajes dos moradores

 
Existe um acervo expressivo de fotos, vídeos, audios e metadados complementares, coletados basicamente por celulares de moradores, que deixam evidente a ilegalidade das invasões e principalmente a motivação letal dessas iniciativas do comando da Nova Brasília. Essas denúncias também chegam a Defensoria Pública através de aplicativos como Nós Por Nós e Defezap. Veja mais aqui.

Um dossiê com os impactos e um catálogo de vídeos e fotos dos casos de invasão no Complexo do Alemão está sendo preparado e será publicado nas próximas semanas em redes sociais, além de integrar a juntada de provas das denúncias encaminhadas ao Ministério Público pelo Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública do Rio de Janeiro (NUDEH).